Ilhados, desilhados e embarcadiços: os estudos culturais na Universidade dos Açores

Maria da Luz Correia
Maria Leonor Sampaio da Silva
Universidade dos Açores

Quase meio século separa a fundação dos estudos culturais nos anos 60 do séc. XX no Reino Unido, os seus estudos sobre as formas de vida populares, o rompimento com um entendimento de cultura que a situa fora da sociedade (Williams, 1958/2017), e a introdução oficial desta área científica na oferta letiva da Universidade dos Açores em 2007, por ocasião da criação de um ciclo de estudos em Comunicação Social e Cultura, no Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas desta universidade. Não deixa de ser sintomático que este marco para a área dos estudos culturais na academia açoriana surja historicamente associado à interdisciplinaridade e ao cruzamento entre alguns eixos fundamentais que fizeram a história dos cultural studies e que orientam hoje as suas abordagens mais recentesos estudos literários, os estudos da cultura e os estudos da comunicação e dos média (Stokes, 2021). A investigação e o ensino dos cultural studies na Universidade dos Açores mantêm a “interdisciplina, transdisciplina e contradisciplina” (Grossberg et al, 1992, p. 4)  que lhe são congénitas, uma espécie de “indisciplina”, “no sentido que lhe dá Mitchell (1995, p.541), isto é, um estado de turbulência em que se rompem as fronteiras internas ou externas de uma disciplina, e que lhe é também conferido por Rancière (2006, p.9), ou seja, um debate sem a segurança e o apaziguamento das disciplinas, das suas categorias e das suas hierarquias e que se desenrola no “espaço sem fronteiras do pensamento comum” (Correia, 2021, p.34). Neste sentido, se o ensino dos estudos culturais passa por diferentes ciclos de estudos, constando como unidade curricular da Licenciatura em Comunicação e Relações Públicas e da Licenciatura  de Estudos Portugueses e Ingleses, e sendo fundamental enquanto área científica no Doutoramento em Literaturas e Culturas Insulares oferecido atualmente pela Universidade dos Açores,  em parceria com a Universidade da Madeira, a Universidade da Córsega e o Inalco, podemos, por outro lado, constatar uma produção científica que põe em diálogo fundamentalmente as áreas científicas da cultura, da literatura, da sociologia e das ciências da comunicação e cujos estudos se dedicam a uma pluralidade de objetos. Referimo-nos aos contextos culturais da produção literária (Silva, 2017; Gil, 2015; Pires, 2003), à problematização das identidades e categorias sociais (como os jovens, as mulheres, os emigrantes, os açorianos) (Correia, 2017; Medeiros, 2015; Faria, 2014; Gil, 2014; Silva, 2014; Pires, 1997), às práticas de tradução (Silva, 2018; Faria, 2016;), à cultura visual (Correia, 2021; Silva, 2011) e, mais recentemente, à condição pós-colonial (Faria, 2017; Boyd, Gil & Wong, 2009), ao pensamento arquipelágico e aos seus pressupostos  epistemológicos (Silva, 2017; Faria, 2016; Gil, 2016). Defenderemos, aliás, que estes pressupostos que têm sido designados através de inúmeras terminologias – estudos insulares, nissologia, arquipelagrafia, etc – e que têm em comum adotar o arquipélago mais como um “modelo de investigação” do que como um “local de investigação” (Edmond & Smith citado por Stratford, Baldacchino. McMahon, Farbotko & Harwood, 2011, p.114), são hoje traços fundamentais para compor o retrato do ensino e da investigação na área dos estudos culturais, na Universidade dos Açores.

Maria da Luz Correia

Professora Auxiliar na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade dos Açores e investigadora integrada do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho. Desde 2016 é Diretora de Curso da Licenciatura em Comunicação e Relações Públicas da Universidade dos Açores. Colabora com o CHAM Açores (Centro de Humanidades – Açores) desde 2021. Em 2013 defendeu a sua tese de doutoramento em Ciências da Comunicação na Universidade do Minho e em Sociologia na Université Paris Descartes – Sorbonne. Os seus projetos de doutoramento e de pós-doutoramento sobre a cultura visual, os postais ilustrados e a fotografia lúdica foram ambos financiados pela FCT (Fundação para a Ciência e a Tecnologia). É autora do livro Imagens de Intervalo: o postal ilustrado e a cultura visual contemporânea (edições Húmus, 2021), co-editou Photography and Gender (2017), Figurações da morte nos média e na cultura (2016), publicando e participando em projetos na área da história dos média, com enfâse nas dimensões culturais e tecnológicas da comunicação. É membro da Passeio, Plataforma de Arte e Cultura Urbana, que coordenou entre 2015 e 2019. Fundou o Grupo de Trabalho de Cultura Visual da SOPCOM e a sua revista científica, a VISTA. É membro da SOPCOM (Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação), da APEF (Associação Portuguesa de Estudos Franceses) e da RNEC (Rede Nacional de Estudos Culturais).

Maria Leonor Sampaio da Silva

Doutorada em Estudos Anglo-americanos, especialidade de Cultura Inglesa, pela Universidade dos Açores, onde tem lecionado disciplinas de Estudos Culturais, Cultura Inglesa, Cultura Contemporânea, Literatura e Tradução. No âmbito dos Estudos Culturais, tem desenvolvido pesquisas relacionadas com a representação das minorias na produção simbólica contemporânea. Na Universidade dos Açores foi diretora do Centro de Línguas e Culturas Anglófonas, do Gabinete de Tradução e Consultoria Linguística, e Coordenadora da Academia Gulbenkian do Conhecimento. É, presentemente, responsável pelo Protocolo e Cerimonial Académico da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Além de artigos e capítulos, em publicações nacionais e internacionais, nas áreas da cultura, tradução e diálogos da literatura com outras artes, destaque-se os livros Aquém e Além de São Jorge: memória e visão, «Coleção Estudos & Documentos» CHAM/ Santa Casa da Misericórdia de Velas, 2014; Um observador observado, edição comentada e traduzida de Silas Weston, Visit to a Volcano, or What I Saw at the Western Islands, Núcleo Cultural da Horta, 2013; Um pacto com as Artes. 30 anos da Academia das Artes dos Açores, Ponta Delgada: Academia das Artes dos Açores e Direção Regional da Cultura, 2010; Laranjas, Dickens e São Miguel, Ponta Delgada: Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada, 2010.